VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – A primeira cena de “Disclaimer” demonstra sua ousadia e seriedade. Em uma premiação, a documentarista britânica de origem iraniana Christiane Amanpour vai a uma homenagem ao trabalho de Catherine Ravenscroft, personagem de Cate Blanchett. Ela é a imagem do sucesso, linda, chique e radiante, ao lado do marido, personagem de um Sacha Baron Cohen quase irreconhecível.
“Cuidado com a narrativa e a forma,” alerta Amanpour em seu discurso. “Sua obra pode nos aproximar da verdade, mas também pode ser usada como uma arma com grande poder de manipulação. O trabalho de Catherine revela algo muito problemático e profundo: nossa própria cumplicidade com alguns dos pecados sociais mais tóxicos de hoje.”
O público não chega a conhecer o trabalho de Catherine, nem que histórias são essas que ela conta com tanto talento. A trama, na verdade, é uma desconstrução daquela personagem, colocada em um pedestal na abertura para, claro, ser arrancada de lá. Catherine será derrubada de todas as maneiras que uma pessoa pode ser derrubada.
“Disclaimer”, série de Alfonso Cuarón que chega nesta sexta na Apple TV+, estreou em agosto, no Festival de Veneza. O diretor mexicano e o evento italiano têm uma longa história em comum em 2001, quando lançou “E Sua Mãe Também”, filme que revelou Gael Garcia Bernal e Diego Luna, Cuarón levou o prêmio de melhor roteiro, e os protagonistas dividiram o prêmio Marcello Mastroianni pelas atuações.
Em 2006, o longa “Filhos da Esperança”, com Clive Owen e Julianne Moore, foi premiado pela fotografia. Em 2013, “Gravidade”, a ficção científica em 3D estrelada por George Clooney e Sandra Bullock, abriu o festival e mais tarde foi premiado com sete estatuetas do Oscar, inclusive o de melhor filme e melhor diretor para Cuarón.
Com dois episódios disponíveis na estreia e um novo a cada semana, o streaming fez uma estratégia de lançamento digna de romance de espionagem, com datas para que os jornalistas “tenham autorização” para revelar os plot twists que consideram essenciais.
Essa é uma adaptação ambiciosa do romance de mesmo nome lançado em 2015 pela escritora inglesa Renée Knight, uma ex-diretora de documentários e roteirista de TV. Traduzido como “Difamação”, o livro acaba de ser lançado pela Companhia das Letras no Brasil.
Ele induz a questões importantes: que informações nós temos de verdade, e quais apenas acreditamos ter? Quem fornece essas informações? Como? O que ganham em troca? Essas perguntas estão sempre no pano de fundo desta série, que deixa a personagem principal numa posição quase de coadjuvante conforme o plano de seu inimigo, Stephen Brigstocke, personagem de Kevin Kline, entra em prática.
A série assume três pontos de vista, e cada um deles é narrado por uma voz distinta, que não a mesma dos atores. O primeiro é esse de Brigstocke, um aposentado que parece ter desistido da própria vida depois da morte de sua mulher, há nove anos. Eles já tinham perdido o único filho, Jonathan.
Quando decide revirar as coisas guardadas por sua mulher, Nancy, personagem de Lesley Manville, descobre que ela deixou um livro na gaveta, inspirado na última viagem de seu filho, justamente a Veneza, onde ele acaba se afogando.
O destino o leva a canalizar todo o seu ódio, renovado na forma de um desejo de vingança, em Ravenscroft. Ela apresenta sua versão como o segundo ponto de vista da história, o de quem sofre as consequências da tal difamação que dá nome à série.
Ao lado de seu marido Robert, papel de Baron Cohen, e do filho rebelde, Nicholas, interpretado por Kodi Smit-McPhee, Catherine mora em uma casa linda em Londres, está no auge da carreira e os estúdios de Hollywood disputam entre si para adaptar seu trabalho em um filme.
O terceiro ponto de vista é o de Nancy, narrado no livro que provoca a ira de seu marido, agora viúvo e sem nada a perder. Nele, um casal muito jovem e apaixonado transa loucamente em trens, debaixo de pontes e em uma gôndola, em uma viagem pela Europa daquelas que os jovens que ainda não estão prontos para encarar a vida adulta costumam fazer no primeiro mundo.
O jovem é o filho deles, Jonathan, interpretado por Louis Partridge. E sua história esbarra na da jovem Catherine, nesta parte interpretada pela atriz australiana Leila George filha do ator americano Vincent D’Onofrio e ex-mulher de Sean Penn.
O equilíbrio e os muitos desequilíbrios entre essas três narrativas é o que se ressalta na série. A tensão é permanente, o espectador nunca sabe se está depositando suas conclusões em terra firme ou na areia movediça. As cenas de sexo e violência são explícitas, mas servem mais para plantar dúvidas no espectador que para explorar nosso prazer banal de ver sangue e gozo.
Cuarón escreve e dirige todos os sete episódios, gravados ao longo de um ano. E, apesar de contar uma história irresistível, impossível de não provocar o desejo de tentar adivinhar o final, o cineasta parece mais interessado em interrogar a construção da opinião pública, tão frequentemente moldada por manchetes descuidadas e postagens em redes sociais. Para ver mais de uma vez, com os dois olhos bem abertos.