SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No último dia 17 de setembro, o juiz militar Ronaldo João Roth, 67, cumpriu uma rotina mantida havia 30 anos. Chegou no começo da tarde à sede do TJM (Tribunal de Justiça Militar), na zona oeste de São Paulo, passou pelo gabinete para vestir a toga e seguiu para sala de audiências para participar de julgamentos de PMs suspeitos de crimes.
Na entrada da sala, porém, foi informado por uma funcionária que, por ordem superior, ele não poderia mais atuar ali. Horas depois, já em casa, Roth recebeu nova ordem: tinha cinco dias para retirar todos os pertences do gabinete, devolver a vaga de garagem e o computador portátil emprestado pelo tribunal.
Roth foi barrado no trabalho porque, naquele dia, fora publicado o resultado de processo administrativo que condenou o magistrado a ficar afastado das funções por dois anos (disponibilidade) por ter, supostamente, desrespeitado uma ordem superior.
O juiz recebeu a segunda mais grave sanção que um magistrado pode sofrer administrativamente, atrás apenas da aposentadoria compulsória, porque, junto com outros quatro juízes militares, autorizou um policial militar suspeito de corrupção a apelar em liberdade de uma condenação.
O PM do interior de estado recebeu três Pix, um deles de R$ 200, para ajudar pescadores da região a escaparem da fiscalização da polícia ambiental. Ficou preso por cerca de três meses até a sentença.
O benefício foi concedido porque, entre outros motivos, o PM era réu primário, tinha bons antecedentes e, principalmente, foi condenado a cumprir uma pena de três anos e dois meses em regime aberto (penas inferiores a quatro anos não são cumpridas em regime fechado).
Mesmo sendo uma prerrogativa do juiz definir a situação do réu em caso de uma sentença criminal, o ato foi considerado por desembargadores do TJM uma afronta a uma ordem dada por eles durante o processo, que decretaram a prisão preventiva do PM, atendendo recurso da Promotoria.
Para os desembargadores, ao ordenar a soltura de uma pessoa que eles tinham mandado prender, o juiz errou gravemente. “A conduta do magistrado constitui séria afronta ao dever funcional de respeitar e cumprir as decisões proferidas pelas instâncias superiores”, diz trecho da decisão.
O afastamento do magistrado tornou-se um dos principais assuntos nos bastidores do judiciário militar porque é vista por advogados ouvidos pela Folha como injusta, por ser demasiadamente pesada.
“Conheço o doutor Roth há 32 anos. Se ele não for o maior expoente do direito militar do país, está entre os dois primeiros. Aí, é aquele ditado popular: prego que se destaca, toma martelada, entendeu?”, disse o advogado Frederico Afonso Izidoro, ex-oficial da PM que já atuou como juiz militar.
Para advogados que pediram anonimato, trata-se de uma retaliação a um juiz considerado pelos colegas como difícil de trato e criador de casos. Seria, na visão deles, uma questão meramente pessoal, tanto que apenas Roth foi punido por uma decisão colegiada. Os outros julgadores nem processados foram.
Eles dizem ainda este seria o primeiro ato de um plano maior dos desembargadores, que é aposentar compulsoriamente o juiz.
Outro ponto que aumenta a controvérsia da decisão é o fato de o relator do processo ser o desembargador militar Orlando Eduardo Giraldi, magistrado que foi denunciado no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) pelo próprio Roth, pelo suposto envolvimento no esquema de fraudes na PM de SP.
Conforme reportagens publicadas pela Folha, Giraldi (que é coronel da PM paulista) teria recebido cerca de R$ 120 mil de um esquema montado para desviar dinheiro de cofres públicos mediante fraude em licitações da PM paulista, segundo chefe do esquema, o ex-tenente-coronel José Afonso Adriano Filho.
Giraldi, que nega envolvimento no caso, continua trabalhando normalmente. Foi ele quem teria presidido toda a instrução do processo contra Roth, ouviu as testemunhas e, no julgamento, foi o primeiro a votar. Os outros seis desembargadores acompanharam o voto do relator.
O advogado Fernando Capano, um dos defensores de Roth, disse ter ficado surpreso com a punição do cliente, por se tratar de situação corriqueira no Judiciário, e também pela sanção, geralmente aplicada para punir magistrados suspeitos de crimes graves, como corrupção e assédio sexual.
“Veja, nós não estamos falando de um caso de corrupção. Nós não estamos falando de desvio de qualquer natureza. Nós estamos falando de uma discussão, que a meu juízo, é inclusive bem controversa. Me parece que nesse caso o tribunal não andou muito bem. O que me cabe? Recorrer. Vamos ao CNJ.”
Também defensor de Roth, o advogado Júlio César de Macedo, indicado pela Apamagis (associação de juízes) disse que o magistrado determinou a soltura do PM condenado a cumprir pena em regime aberto até para não incorrer em crime de abuso de autoridade.
“Como manter preso alguém condenado para cumprir uma pena em regime aberto? Sendo que, se você faz isso, você comete o crime de abuso de autoridade. Isso é uma questão jurisdicional, fundamentada, com base legal, e ocorre de forma muito corriqueira no TJ (Tribuna de Justiça).”
Ainda segundo Macedo, a defesa pediu o afastamento de Giraldi no processo por suspeição. O desembargador teria apontado em relatório que Roth decidiu pela liberdade do PM porque a advogada do PM foi namorada do juiz no passado (relacionamento encerrado em 2017, segundo o processo).
“A partir daí, nós alegamos a suspeição, porque esses questionamentos extravasavam os limites da portaria (acusação) e imputavam ao doutor Roth o descumprimento de um suposto acórdão datado de 2016, que dizia que a partir daquela data ele não poderia atuar em processo dessa determinada advogada por suspeição. Mas esse acórdão nunca veio aos autos.”
Procurado, o TJM informou que a punição foi aplicada após julgamento de regular processo administrativo disciplinar ocorrido em sessão realizada em 16 de setembro. A ementa do acórdão unânime registrado pelos desembargadores militares foi publicada no dia 17.
“Foram consideradas comprovadas infrações disciplinares graves, com violação aos deveres funcionais”, diz a nota. O órgão diz que Roth violou artigo da Lei Orgânica da Magistratura e trechos do Código de Ética da Magistratura Nacional.”
Ainda segundo o tribunal, o magistrado “já havia sido punido neste ano por outros fatos, com duas penas de advertência e uma de censura”. “O teor integral do Acórdão não pode ser disponibilizado, devido a natureza restrita às partes dos processos disciplinares”, finaliza a nota.