Thiago Lacerda, fora da Globo, leva ‘A Peste’ de Albert Camus aos palcos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Logo na primeira cena de “A Peste”, monólogo baseado na obra de Albert Camus, o ator Thiago Lacerda acende um cigarro. Enquanto seu personagem, Dr. Bernard Rieux, reflete imóvel sobre a crescente mortandade que assola a cidade argelina de Orã, a fumaça nada cênica chega até a plateia.

“Não me preocupo com o politicamente correto ao fumar em cena, é uma brincadeira, homenageio Camus, é a lembrança pictórica que tenho dele. O cigarro é a prova concreta dessa nossa conexão”, diz o ator.

Aos 46 anos, Lacerda se dedica cada vez mais a seu ofício. E, se foi como galã de novelas como “Terra Nostra” e “América” que seus olhos verdes e sua estatura de 1,93 metro se tornaram nacionalmente conhecidos, hoje o palco é seu principal refúgio —assim como para muitos colegas que, como ele, deixaram a Globo nos últimos anos.

Seu contrato com a emissora foi encerrado no início deste ano, após um mais de 25 anos de casa. Tanto tempo na telinha lhe garantiu tranquilidade financeira e a possibilidade de escolher os próprios projetos, como a adaptação deste clássico que estreia nesta quinta no Sesc Santana.

É sua quarta parceria com Ron Daniels, diretor nascido em Niterói que fez parte da formação do Teatro Oficina antes de se mudar para Nova York, onde residiu por mais 30 anos, até se estabelecer em Londres.

Juntos, atualizaram personagens clássicos de Shakespeare —como Hamlet e Macbeth—, cujas crises de consciência foram apresentadas com falas marcadas por um português nada castiço —”quer tirar um sarro da minha cara?”, questionava Hamlet.

Com isso, aproximaram o público de temas caros ao bardo, como a história da destruição de uma ordem estabelecida, o colapso de uma era, um momento em que até a democracia perde seu sentido.

O mesmo acontece com “A Peste”, romance publicado em 1947 no qual Camus criou o surto fictício de uma peste como metáfora amplificada dos males da Segunda Guerra Mundial, especificamente da ocupação da França pelos nazistas e do flagelo de uma civilização contemporânea sob o signo da miséria moral.

“A peça nos fala sobre o absurdo de se viver”, diz Daniels, que assina a adaptação e a direção. “Camus nos questiona sobre a posição do homem no mundo, sofrendo flagelos, mas sobrevivendo.”

O desejo de montar a peça nasceu em 2020, incentivado pela angústia coletiva provocada pela pandemia. Com o confinamento obrigatório, os ensaios começaram online e só não prosseguiram porque a dupla não conseguiu a liberação dos direitos autorais.

“Foi até bom, porque o livro é uma bela alegoria sobre a peste que nos assola hoje, que é o vírus do ódio e da indiferença aos pobres”, diz o encenador, que confessa seu incômodo com a presença do cigarro. “Mas preciso que Thiago fique inspirado em cena e, se essa merda de cigarro ajuda, aceito.”

Daniels orientou o cenógrafo Márcio Medina a criar um cenário minimalista, formado por uma mesa, duas cadeiras e um armário com frascos. Ao fundo, um telão exibe imagens que podem incomodar —como uma multidão de ratos mortos, com focinho ensanguentado, vítimas da peste.

Em seu monólogo, o doutor relata como os habitantes de Orã, até então apenas queixosos de um mal-estar que disfarçavam com gracejos e piadas, começam a entender que, com tantos animais mortos, algo realmente ameaçador ronda a cidade.

“É um exercício do homem diante do horror. À medida que a peste avança, vêm a negação, a indiferença, o esquecimento”, diz Lacerda, que apresentou os primeiros minutos da peça na semana passada para alunos de uma escola de teatro.

Além do questionamento sobre o uso do cigarro —asmática, uma moça reclamou da fumaça—, o ator respondeu ainda sobre conciliar a carreira entre teatro e televisão. “São uma coisa só, mas com características distintas. A produção na TV acontece com uma velocidade que é a antítese do teatro, que pede mais reflexão. O cinema está no meio do caminho porque pede o mesmo tempo de criação que o teatro, mas sem ser. E precisa da mesma velocidade de produção da TV, também sem ser.”

Lacerda contou que ficou paralisado após gravar a primeira cena de sua carreira, em 1997, para a série teen “Malhação”. “Mas também descobri que jamais deixaria de gostar desse meio. Meu prazer é contar uma história e nada melhor que a televisão para atingir milhões de pessoas.”

Mas sua relação com os clássicos no palco também é de longa data. Em 2003, foi convidado para substituir Eriberto Leão como protagonista de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, versão da obra de José Saramago. Apesar da convivência com atores tarimbados, como Celso Frateschi e Paulo Goulart, sentiu-se incomodado por exibir o corpão praticamente nu.

Tanto que, cinco anos depois, quando foi chamado por Gabriel Villela para protagonizar a versão de “Calígula”, baseada na obra de Camus, Lacerda só aceitou após uma conversa franca com o encenador. “Disse a ele que, se fosse para exibir meu sexo, não aceitaria. Ele me tranquilizou ao dizer que a peça destacaria aquela expressão individual do pequeno, médio ou grande poder —quando o exercemos no dia a dia. A montagem mudou minha perspectiva sobre a encenação teatral.”

A parceria com Daniels começou em 2012, com a versão de “Hamlet”. Apesar de ser sua primeira incursão pela dramaturgia de Shakespeare, Lacerda já estava familiarizado com as crises de consciência do protagonista. “Tenho certeza que Camus se inspirou em Hamlet. São dois personagens existencialistas, que exercitam constantemente o livre-arbítrio, que vivem uma liberdade sem limites.”

E a experiência com o imperador romano pelo olhar de Camus facilitou a decisão de ficar sozinho no palco em “A Peste”. “Não vejo o espetáculo como um monólogo, mas uma conversa. Ele é um ator que quer sempre se posicionar mais perto do público”, diz Daniels.

A PESTE

– Quando De 10 de outubro a 10 de novembro, às quintas, sextas, sábados e domingos

– Onde Sesc Santana – av. Luiz Dumont Villares, 579, São Paulo

– Preço R$ 70

– Link: https://www.sescsp.org.br/programacao/a-peste/

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