MONTEVIDÉU, URUGUAI (FOLHAPRESS) – Deputado eleito do Uruguai, Gustavo Salle, 66, tem um vocabulário particular. Diz ser um político heterodoxo que se opõe ao que chama de cleptocorporatocracia (“o poder das corporações corruptas”) por meio da “bandeira soberanista”. E, assim, ele se tornou o personagem que pode complicar a vida do futuro presidente do país.
O partido que criou em 2022, o Identidade Soberana (IS), conquistou 68,8 mil votos no final de outubro. Pode até parecer pouco, mas no pequeno Uruguai isso representou 2,7% do eleitorado e deu a esta legenda duas cadeiras na Câmara de Deputados. Essas vagas vão ser definidoras para o futuro governo, que não terá maioria no Congresso.
Seja Yamandú Orsi (Frente Ampla) ou Álvaro Delgado (Partido Nacional) o ganhador no segundo turno deste domingo (24), nenhum governo terá a maior parte das cadeiras entre os deputados. Das 99 vagas, a Frente conseguiu 48; e a Coalizão Republicana (centro-direita que inclui o Nacional), 49.
Os dois assentos restantes são os do IS, ocupados pela família Salle: o patriarca Gustavo e sua filha Nicolle. Será preciso negociar com eles, mas o “político heterodoxo contra a cleptocorporatocracia” não parece muito disposto. “Vamos bloquear o Congresso da casta política.”
“Yamandú Orsi e Álvaro Delgado são como dois fantoches de corporações corruptas que se dispuseram a levar adiante um genocídio por meio da vacinação”, diz à reportagem o advogado em um escritório de seu partido na capital Montevidéu. Salle é antivacina.
Para ele a pandemia de coronavírus foi uma “grande mentira sanitária armada por organismos multilaterais em conivência com corporações e governos com o interesse de dominar completamente o ser humano.
“Mas tivemos muitas mortes pelo vírus”, argumentou esta repórter.
“Não, as mortes foram pelas vacinas”, respondeu Salle. Não há prova científica disso.
Ele se tornou conhecido no período de emergência sanitária. Seu megafone foram as redes sociais, e ele fez delas a chave para destravar o Congresso. Mas ele promete anular o voto neste domingo. Diz que Delgado ligou para pedir uma reunião, mas que ele declinou e que passará o domingo comendo um assado com a família em sua propriedade nos arredores da capital.
Salle é contra a Agenda 2030, o pacote de medidas consensuado na ONU para promover um futuro mais sustentável, desde a igualdade de gênero até o combate à emergência climática. Diz que o projeto é ecocida e que “subverte os valores tradicionais da sociedade ocidental”.
Mas diz que defende o meio ambiente. É contra o aquecimento global? Não. “É falso que a mudança climática ocorre por causas antropológicas”, diz ele. A evidência científica mostra que, sim, a ação do homem acelera o aquecimento da Terra.
Com esse discurso, imagina-se que seria próximo a figuras como o presidente argentino, Javier Milei, anti-Agenda 2030, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), que teve um discurso antivacina.
Mas não é bem assim. “Bolsonaro fez pouco na época da Covid, e Milei é perigoso para a Argentina. Além do mais, os dois são sionistas. Milei é um agente do Mossad [agência de inteligência de Israel]”, afirma. “Eu sou totalmente antissionista. Essa guerra [Israel-Hamas] é um massacre.”
Sobre a atual Presidência, de Luis Lacalle Pou, diz que foi um governo nefasto -de novo, “a serviço da cleptocorporatocracia”.
“Não há soberania ou autogoverno no Uruguai, nem em nenhum país do mundo. Há poderes de corporações por cima dos Estados. Da ONU, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e das agências qualificadoras de risco. Não defendem o povo, são a plutocracia, estão a serviço dos megarricos do mundo.”
Então lança uma comparação do Fórum Econônico Mundial, de Davos, o suprassumo anual dos debates econômicos internacionais, com o Foro de São Paulo, a aliança regional de esquerda que ainda engloba regimes autoritários como Cuba, Nicarágua e Venezuela. “Ambos defendem a Agenda 2030”, diz Salle.
Com demandas pouco ou nada factíveis para negociar com esquerda e direita no Congresso, como “revisar leis de combate à mudança do clima” e “tirar poder do Ministério Público”, o advogado antissistema pode ser uma dor de cabeça para o futuro presidente.
Salle tem receio de não cumprir o mandato porque diz que legisladores tentarão derrubá-lo com base no Artigo 115 da Constituição local, segundo o qual, com dois terços dos votos da Casa, um parlamentar pode ser suspenso por “desordem na conduta e no desempenho de suas funções” ou por “atos que o fazem indigno do cargo”.
“Sou claramente um político heterodoxo, quero dizer, diferente”, diz ele, quando a reportagem pede para que se descreva. De fato.