Pastores evangélicos vão de outsider a protagonistas em quase um século na política

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 95 anos, um pastor evangélico aportou pela primeira vez no Legislativo brasileiro, com a eleição de Natanael Cortez para deputado estadual do Ceará. O presbiteriano não esquentou a cadeira por muito tempo —logo veio a Revolução de 1930, e Getúlio Vargas dissolveu poderes nação afora.

Mas vida longa teria a presença evangélica numa cena política até ali dominada pela hegemonia católica, como tudo o mais no país.

Em 1933, seria a vez do paulista Guaracy Silveira vencer, agora num pleito nacional. Eleito para a Assembleia Constituinte que lapidaria a Constituição de 1934, o pastor metodista era muitas coisas, quase nenhuma associada ao estereótipo que temos hoje do político crente padrão.

Não seria errado chamá-lo de pastor socialista. Ele integrou primeiro o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e depois o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Enquanto deputado, lutou contra o ensino religioso nas escolas e a favor do divórcio. Também advogou pelo direito das mulheres votarem e serem votadas.

Nem tudo destoava da mentalidade evangélica da época. Se defendia a separação entre Estado e igreja, era por temer o monopólio católico. O Brasil, afinal, só demoveu o catolicismo como sua religião oficial em 1890, após trocar Império por República. Virou Estado laico entre aspas, já que a Igreja Católica manteve forte influência por anos sobre a casta política.

O pastor rejeitava a obrigatoriedade de aulas de religião por deduzir que o conteúdo seria quase que exclusivamente católico, como lembra André Ítalo Rocha em “A Bancada da Bíblia – Uma História de Conversões Políticas”.

Não dá para dizer que abraçou ideais caros a colegas. Primeiro capelão militar brasileiro, acabou expulso do PSB pela ala marxista do partido, aponta o teólogo Cilas Ferraz de Oliveira em tese de doutorado sobre Silveira —que se apresentava na Constituinte como protestante, socialista e liberal.

Se hoje são sobretudo pessoas não religiosas a torcer o nariz para políticos evangélicos, a repulsa antes partia do grupo cristão majoritário, diz Rocha. “Os católicos olhavam para evangélicos como figuras estranhas, quase como membros de seitas.”

A dois anos do golpe militar de 1964, o eleitorado paulista colocou de forma inédita um líder pentecostal no Congresso, Levy Tavares, pastor na O Brasil para Cristo.

O pentecostalismo, maior galho evangélico no país, costuma ter fiéis menos discretos do que o protestantismo histórico. “São mais fervorosos, falam da Bíblia sem nenhuma vergonha”, afirma Rocha. “Quando Levy chega, é de certa forma ridicularizado por outros deputados, que sequer o levavam a sério.”

O ponto de virada, que entrelaça de vez púlpitos e palanques, é a eleição dos deputados e senadores que vão redigir a Carta de 1988. Vem daí a primeira bancada evangélica, que deu “um banho bíblico” no presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, nas palavras do próprio.

Em 1986, Josué Sylvestre, assessor parlamentar ligado a outra Assembleia, a de Deus, publica “Irmão Vota em Irmão”, símbolo dos novos tempos. Está lá: “Crente vota em crente, porque, do contrário, não tem condições de afirmar que é mesmo crente”.

Vai caindo por terra o lema que por muito tempo moldou o fiel médio: a política como coisa do diabo, da qual é melhor manter distância. “A Assembleia de Deus, igreja que liderou essa transição, tinha receio de que a esquerda dominasse a Constituinte, aprovando pautas muito progressistas”, diz Rocha. “A Guerra Fria ainda estava aí, havia medo do Brasil virar um país comunista, como Cuba e sua fama de perseguir as igrejas.”

É esse ethos que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro recupera quando, em ato a favor de seu marido, diz que “por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião, e o mal ocupou o espaço”.

A primeira bancada evangélica representava 6% dos 559 parlamentares da Constituinte. Nem sempre os pares de fé se entendiam: estranhavam-se em temas como aborto e divórcio, por exemplo.

Embates entre eles beiravam o pitoresco. Houve a vez em que o pentecostal Sotero Cunha e a adventista Eunice Michiles discutiam se o aborto era aceitável na gravidez pós-estupro. Cunha: “Está provado cientificamente que a mulher pode evitar o estupro”. Michiles pasmou: “Mesmo com um revólver apontado para a cabeça?”. Ele: “Bem, pode perder a vida, mas evitar o estupro”.

Só em 2003, primeiro ano de Lula (PT) no poder, que o bloco vai se formalizar, agora como Frente Parlamentar Evangélica. O alinhamento entre seus membros vai se azeitar com o tempo e atingir seu ápice com a ascensão do bolsonarismo, que tem nos evangélicos um pilar.

Foi com a Lei Saraiva, de 1881, que evangélicos ganharam direito de concorrer em eleições —até então, só o podiam católicos. Um punhado de crentes conquistou assentos, mas a identidade religiosa não era fator relevante.

Isso até o pastor Natanael, lá em 1929. Esse percurso se agigantou nas últimas décadas, até chegarmos à atual bancada evangélica, um dos centros de gravidade da Câmara.

Victor Fontana, pastor da Comunidade da Vila, sublinha a habilidade de alguns líderes “de capitalizar em cima de um conservadorismo brasileiro que sempre esteve lá”, e que talvez “tenha se tornado um pouco ‘démodé’ depois das Diretas Já, dos caras pintadas [anti-Collor]”.

O apóstolo César Augusto, da igreja Fonte da Vida, evoca a Bíblia para justificar a ação evangélica na política. “Ela ensina que a igreja governará a Terra, destacando a importância de refletir os valores do Reino de Deus na esfera pública.”

Ele é pai de Fábio Sousa, deputado de 2015 a 2019, hoje suplente do PL de Jair Bolsonaro, em Goiás. Também tem um genro vereador.

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