Onda conservadora ecoa na moda, que resgata ideal da ‘bela, recatada e do lar’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A moda historicamente reflete as condições sociais e políticas, particularmente no que se refere ao papel das mulheres. Durante o Renascimento, por exemplo, a exclusão das mulheres do mercado de trabalho na Europa foi acompanhada por estilos que enfatizavam a cintura, como os espartilhos. Essa tendência de realçar a feminilidade clássica continuou ao longo dos séculos e ressurgiu em momentos de repressão social.

Em 2023, a moda voltou a destacar silhuetas com cinturas marcadas, tanto no prêt-à-porter quanto agora na alta-costura, com visuais extravagantes, como visto nas coleções de Valentino, Dior e Schiaparelli.

Esse ressurgimento ocorre em um contexto de avanço conservador global, onde a feminilidade clássica se destaca novamente, refletindo tensões sociais contemporâneas e a busca por identidades tradicionais em tempos de incerteza, conforme destacam especialistas como Carol Garcia, pesquisadora de moda e feminismo do Bureau de Estilo, e Simone Jorge, doutora em ciências sociais com foco em ativismo feminino e políticas de gênero.

“A moda e os padrões de beleza perpetuam estruturas de poder que aprisionam as mulheres, reforçando estereótipos que limitam sua autonomia e expressão”, observa Simone Jorge, doutora em ciências sociais. Essa dinâmica reflete uma luta constante contra forças que buscam manter as mulheres em papéis submissos, desqualificando sua aparência e desviando o foco de suas conquistas políticas e sociais.

“A Dior, ao homenagear Saint Laurent e trazer de volta a silhueta de 1958, pode estar apenas brincando com a nostalgia e a estética, mas, num contexto maior, esse resgate de um ideal feminino ‘belo, recatado e do lar’ ressoa com movimentos conservadores que romantizam o passado”, afirma Carol Garcia.

A moda reflete contextos sociais e políticos, mesmo quando não faz declarações diretas. Marcas como Schiaparelli e Chanel, ao valorizar silhuetas exageradamente femininas, podem estar respondendo a um movimento cíclico da moda ou, de forma mais sutil, refletindo uma tentativa de controle sobre a liberdade feminina.

As coleções de alta-costura ainda não fazem uma relação direta com a eleição de Donald Trump, embora a campanha eleitoral dele já estivesse em andamento quando as maisons começaram suas produções. O que é apresentado em janeiro começa a ser planejado em agosto, afirma o designer de moda e mestre em história da arte Lorenzo Merlino.

Na Europa, a extrema direita avança: na Itália, Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia) segue no poder; na Áustria, o Partido da Libertação cresce. Na França, partidos de esquerda, centro e direita moderada formaram a “frente republicana” para bloquear Marine Le Pen (extrema direita) e suas propostas anti-imigração, anti-UE e autoritárias.

A filósofa contemporânea, professora e feminista Silvia Federici já relacionou, em seus livros, que quanto mais as mulheres ganham direitos, mais surgem ideologias para tirá-los. O retorno da magreza extrema, a desvalorização da diversidade na moda, além de tendências como “quiet luxury”, minimalismo e o movimento “clean girl” remetem a esse olhar mais tradicional.

Carol Garcia, citando Federici, afirma que a autonomia das mulheres frequentemente enfrenta resistência, sugerindo que a moda pode ser tanto uma expressão cultural quanto um instrumento de pressão social.

“Em um cenário global onde políticas conservadoras avançam e direitos das mulheres são questionados, a feminilidade clássica ressurge como tendência”, completa Garcia.

“A ênfase na cintura marcada pode estar ligada também ao declínio de temas como diversidade e inclusão sob governos conservadores, que tendem a colocar esses assuntos em segundo plano”, aponta a pesquisadora de moda Ketlyn Araujo.

A alta-costura influencia diretamente o prêt-à-porter, difundindo tendências como a cintura marcada, que pode se tornar um símbolo aspiracional de feminilidade tradicional. Embora nem todas as mulheres adotem essa estética, ela impacta a forma como a sociedade valoriza certos corpos e comportamentos.

A reinterpretação dessas tendências é crucial: nos anos 1980, por exemplo, a cintura marcada foi associada ao “power dressing”, simbolizando poder. Hoje as mulheres podem ressignificar essas silhuetas de forma autônoma, mas a moda continua sendo uma dualidade. “Tanto ferramenta de expressão quanto de repressão –dependendo de quem a controla”, completa Carol Garcia.

O designer de moda e mestre em história da arte Lorenzo Merlino pontua também que o luxo está enfrentando uma crise e que algumas marcas respondem com extravagância, relacionando-se a um universo de escapismo para atrair consumidores em meio à retração econômica.

“Em tempos de crise, cria-se um sonho para seduzir o consumidor, o que também abre espaço para um escapismo que pode ser interpretado como uma forma de se alienar de contextos políticos opressores.”

A moda pode ser tanto um campo de experimentação e subversão de normas quanto um instrumento que sustenta as elites e preserva o status quo. Enquanto oferece espaço para expressão, também pode reforçar estruturas de poder já estabelecidas.

Merlino também observa que a coleção da Dior, assinada por Maria Grazia Chiuri, foi vista por alguns como menos política, trazendo looks mais cobertos e “pudicos”, o que sugere um possível paralelo com o aumento do conservadorismo na sociedade. A escolha por silhuetas mais fechadas pode refletir, mesmo que indiretamente, um contexto cultural e social mais cauteloso.

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