ROTERDÃ, HOLANDA (FOLHAPRESS) – Durante sua graduação em física na USP (Universidade de São Paulo) de São Carlos, Roberta Pereira cursou uma disciplina sobre fundamentos de inteligência artificial (IA). Apaixonada por física computacional, que utiliza recursos das ciências da computação para investigar fenômenos físicos, ela não pensou em trilhar uma carreira relacionada à IA.
Mas o cenário mudou durante seu mestrado, realizado no IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP. Inicialmente, sua pesquisa consistia em investigar o fenômeno que ocorre quando um buraco negro suga um astro, como uma estrela, ou alguma substância presente no Universo.
Pesquisar esses eventos envolvia o uso de simulações numéricas, que consistem em cálculos matemáticos para reproduzir fenômenos físicos. “Você pega um sistema com as leis da física, pega as equações que descrevem aquilo, e utiliza ferramentas matemáticas para simular numericamente”, explica Pereira.
Com o tempo, no entanto, a agora doutoranda também do IAG adotou inteligência artificial para realizar essas simulações de buracos negros. Ela explica que essa transição também envolve um aspecto prático. Atualmente, as técnicas numéricas tradicionais demandam cada vez mais computadores superpotentes, chegando a um limite que não é possível avançar, além de ser muito caro. “É necessário buscar novos métodos, e um deles é o uso de inteligência artificial.”
No mestrado, o estudo de Pereira envolveu uma simulação mais simples dos buracos negros. Já no doutorado ela optou por complexificar mais a operação com a inclusão de campos eletromagnéticos. A pesquisadora enfatiza principalmente as turbulências, importantes para buracos negros e, na realidade, para a astrofísica em geral. Turbulências, por exemplo, são as responsáveis pelo transporte de energia.
No caso de Pereira, o objetivo principal é observar se uma IA é capaz de aprender física. Para isso, um passo inicial foi treiná-la por dados iniciais, aqueles desenvolvidos por meio das simulações numéricas, que foram fornecidos para a inteligência, assim como a resposta final. Dessa forma, é possível observar o quanto a inteligência acertou ou não nas simulações, melhorando os resultados a fim de evitar erros.
No momento, a pesquisadora já escreve sua tese de doutorado e assegura que seu modelo é capaz de gerar previsões. “Ele consegue prever até mesmo o transporte de energia”, afirma, em referência ao fenômeno de turbulências que ela investiga.
O modelo de IA desenvolvido por Pereira é diferente de outros exemplos mais conhecidos pelo público, como o ChatGPT. Enquanto Pereira quer construir uma inteligência que seja capaz de gerar novos conhecimentos a partir dos sistemas físicos, o ChatGPT é mais uma repetição do que já se encontra disponível.
A lógica buscada por Pereira é parecida ao modelo de inteligência artificial trabalhado por Cecilia Garraffo, diretora do AstroAI, um centro voltado para o desenvolvimento do uso de IAs no campo da astrofísico e integrado ao centro de astrofísica da Universidade Harvard e do Instituto Smithsonian, ambos nos Estados Unidos.
Garraffo diz que, no AstroAI, o objetivo é desenvolver modelos de IAs que consigam extrair informações sobre fenômenos astrofísicos e não reproduzir dados já existentes e consolidados.
O grande número de novos dados astrofísicos gerados atualmente é uma das razões que motiva grupos de estudo como o dirigido por Garraffo. “Vamos ter novos telescópios que observarão, em um ano, mais do que observamos até agora”, afirma. A busca por aquilo que ainda não se sabe na astrofísica é outro aspecto chave para as IAs desenvolvidas no centro que ela dirige.
Para alcançar esses objetivos, o desenvolvimento de diferentes modelos de inteligências é necessário. A partir de dados sintéticos, os pesquisadores do AstroAI desenvolvem os diferentes modelos. “Nós treinamos modelos com dados que temos a resposta”, diz Garraffo, já que assim é possível checar se a máquina está entregando resultados corretos.
Um desses modelos foi construído para decifrar detalhes de sistemas físicos: temperatura, massa e outras características. Para consolidar tais informações, um especialista demoraria cerca de 24h. Com a IA, é menos de um segundo.
Mas nem sempre é preciso trabalhar em um modelo do zero -às vezes, é possível adaptar um já existente para outros propósitos. Esse foi o caso desse modelo já mencionado. Com algumas adaptações, que exigiram duas semanas de trabalho –enquanto o desenvolvimento total tomou cerca de oito meses–, o modelo foi capaz de identificar moléculas na atmosfera de diferentes planetas.
Essa funcionalidade é relevante quando se considera um imbróglio envolvendo exoplanetas –aqueles fora do Sistema Solar e que orbitam outras estrelas que não o Sol. Atualmente, astrônomos tentam identificar, por meio da interação entre esses exoplanetas e suas respectivas estrelas, a presença de moléculas que indicam a possibilidade de existência de vida. O dióxido de carbono é um exemplo.
O reconhecimento dessas moléculas, porém, é custosa, sobretudo porque, por enquanto, é necessário identificá-las individualmente. A intenção de Garraffo e de outros pesquisadores do AstroAI é construir uma IA que faça tal trabalho. Atualmente, a IA adaptada do outro modelo é capaz de identificar cinco dessas substâncias, mas os cientistas já estão trabalhando para alcançar resultados ainda mais avançados.
A diretora do centro explica que não adotar IAs como ferramentas na astrofísica, mesmo que somente para algumas finalidades, é uma limitação. Ela traça um paralelo com computadores: no início, era até possível realizar tarefas sem essas máquinas. “Mas por que você gostaria de fazer isso?”