Meirelles revela em livro de memórias que Lula pediu corte de juros para atingir meta de crescimento

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Em 2007, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava no início do seu segundo mandato e tinha acabado de anunciar a criação do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). A meta era crescer em média 5% ano, mas os juros em 11,25% eram um empecilho para os planos do presidente da República.

Na véspera da reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), Lula ligou para o seu presidente do Banco Central: “Meirelles, eu nunca te pedi nada”, disse. “É verdade”, respondeu Henrique Meirelles. “Pois hoje eu vou te pedir. Vou te pedir que corte os juros, porque senão nós não vamos crescer os 5% da nossa meta. Você precisa colaborar e baixar a taxa de juros.”

O diálogo é descrito por Meirelles no livro de memórias “Calma sob Pressão”, da editora Planeta, que será lançado na terça-feira (24), em São Paulo.

Meirelles conta que respondeu a Lula que não precisava cortar os juros. “Nós vamos fazer a política monetária correta e o Brasil vai crescer mais do que 5%”, argumentou o ex-banqueiro, ex-ministro da Fazenda e candidato à Presidência em 2018 pelo MDB, hoje com 79 anos.

O Copom manteve juros no mesmo patamar, Lula ficou zangado e parou de conversar com Meirelles. Meses depois, em nota cifrada numa coluna de jornal, recebeu o recado do petista: “A raiva passou”.

Após 17 anos do pedido para o BC cortar a taxa Selic e com Lula de volta à Presidência para o terceiro mandato, a leitura do livro, escrito na primeira pessoa, passa a sensação de que a política econômica brasileira segue cercada dos mesmos impasses e dilemas do passado.

Pelo fato de Lula estar novamente no Palácio do Planalto, o 8º capítulo do livro “Sob Fogo Amigo 2003 -2008 ” é, sem dúvida, o mais rico em detalhes sobre o jogo político, as intrigas dentro do governo e a pressão nos gabinetes de Brasília do ponto de vista de um dos principais personagens da cena econômica do país das últimas três décadas.

Alguns dos dilemas econômicos da época descritos na autobiografia, como a tentativa de acelerar o crescimento via aumento das despesas e estímulos fiscais, ataques ao BC para pressionar a redução dos juros e risco de contabilidade criativa, são temas das manchetes nos dias atuais.

O próprio Meirelles em uma das passagens do livro aborda esses problemas ao dizer que as políticas monetária e fiscal caminharam bem no primeiro mandato de Lula. “Palocci entendeu um conceito que muitos economistas da esquerda se recusam a aceitar: o gasto público tem efeito apenas até um certo ponto. O que gera emprego e crescimento de um país é o setor privado, não o público.”

No capítulo “No olho do furacão – a crise do suprime”, que trata dos anos da crise financeira internacional de 2008, momento de elevada tensão que explica o nome ao livro, Meireles não mede as palavras para relatar o confronto com Guido Mantega, que substituiu Antônio Palocci na Fazenda. A batalha era sobre o rumo das medidas a tomar.

“No meio do caos, o ministro Guido Mantega veio falar comigo. Ele não queria que o BC fizesse o leilão, mas que as linhas de crédito que estavam sendo disponibilizadas com recursos das reservas internacionais fossem canalizadas apenas pelo Banco do Brasil. Eu disse não”, lembra.

As constantes trombadas entre Meirelles e Mantega nos bastidores eram conhecidas em Brasília, mas Meirelles fornece um olhar mais próximo aos conflitos da época.

Em outro trecho, Meirelles revela que Aloizio Mercadante o procurou ainda na campanha eleitoral de 2002 para que desistisse da candidatura a deputado pelo PSDB com o aceno de Lula para ser presidente do BC. Mercadante deixa claro na conversa que não dava para Meirelles ser presidente do BC de um governo do PT tendo sido eleito deputado pelo PSDB.

Lula venceu as eleições e Meirelles, eleito, desistiu do mandato aceitando o convite, com o compromisso do presidente de ter independência. De acordo com Meirelles, Lula também prometeu apresentar um projeto para deixar na “letra da lei a independência do BC”. Lula concordou, mas o projeto não foi apresentado. A autonomia do BC, aprovada no governo Bolsonaro, virou alvo de críticas de Lula anos mais tarde.

Um segunda sondagem, desta vez para ser ministro da Fazenda no lugar de Joaquim Levy, foi feita pela presidente Dilma Rousseff, em novembro de 2015, por intermédio de Jaques Wagner (PT-BA), então ministro da Casa Civil e hoje senador.

No governo Temer, Meirelles propôs o teto de gastos, odiado pelo PT, que o substituiu no primeiro ano do Lula 3 pelo arcabouço fiscal. Para ex-ministro da Fazenda, o reconhecimento pelos banqueiros centrais das medidas de enfrentamento da crise de 2008 e o teto de gastos são os pontos mais altos e desafiadores da sua vida pública.

No livro, ele também conta episódios da sua infância e juventude em Goiás e do começo da vida profissional. Entres essas histórias, o serial killer que foi motorista da família e a disputa pelo grêmio estudantil em que escapou de ser baleado.

À reportagem, Meirelles diz que Lula tem que concluir que o governo precisa gastar menos. “Enquanto ele próprio e a equipe acreditarem que gastar mais é a solução, vamos ter essa questão [o problema fiscal]”.

“Pela minha própria experiência o que funciona mesmo é cortar despesa e não ser criativo na contabilidade. É isso que faz com o que o Brasil possa crescer mais”. O livro de memórias, diz, era um sonho antigo.

Lula assina um dos prefácios e Temer, o outro. “Faço questão de destacar a lealdade dele [Meirelles] ao nosso projeto de crescimento econômico com inclusão social”, escreveu Lula.

Por coincidência, o lançamento do livro acontece na semana seguinte em que o Copom subiu a taxa Selic na primeira alta no governo Lula 3 e com o diretor de Política Monetária do BC, Gabriel Galípolo, já indicado para presidir o BC.

Galípolo passa agora por um teste de fogo para mostrar que não será subordinado a Lula. “O Galípolo vai sofrer muito mais pressão do que o Meirelles. A expectativa que o PT tem sobre o Galípolo é muito maior”, diz Thomas Traumann, coordenador editorial do livro.

CALMA SOB PRESSÃO

Preço R$ 59,90

Autoria Henrique Meirelles

Editora Editora Planeta

LANÇAMENTO

24 de setembro, a partir das 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Iguatemi – av. Brig. Faria Lima, 2.232, Jardim Paulistano, São Paulo

O QUE MEIRELLES CONTA NO LIVRO

**O Mundo Caiu**

“Era preciso mostrar que estávamos falando sério. Por isso, logo na minha primeira reunião, decidimos aumentar ainda mais os juros que já estavam altos, agora para 25,5%. Como essa era a primeira reunião do BC sob o mandato de Lula, o mundo caiu. Deputados e senadores do PT chiaram. Eu fui em frente. Logo depois, José Dirceu, então ministro da Casa Civil, disse publicamente que o presidente Lula iria ordenar a queda dos juros na reunião seguinte. Na reunião do Copom de fevereiro, em vez ao invés de baixar a taxa de juros, como tinha sido anunciado pelo ministro Dirceu, nós subimos para 26,5%. Foi um acontecimento. Essa segunda alta dos juros -contrariando o que o ministro mais poderoso do governo havia dito- deu a todos a confiança de que o BC tinha realmente autonomia.”

**O pedido de Lula ainda na campanha de 2002**

“Era início de julho de 2002 e eu estava no interior de Goiás fazendo campanha para deputado federal pelo PSDB quando o celular tocou com um número de Brasília. Do outro lado estava o então deputado federal Aloizio Mercadante, um dos mais próximos interlocutores do então candidato a presidente pelo PT. “Meirelles, em primeiro lugar, o Lula vai ganhar a eleição. Segundo: estamos pensando que você pode ser um bom presidente do Banco Central. Mas, poxa vida, não vai dar para você ser presidente do Banco Central de um governo do PT tendo sido eleito deputado federal pelo PSDV…”, ele me disse. “Aloizio, estou no meio da campanha. Não vou renunciar agora [à candidatura a deputado federal] por conta de uma hipótese. E eu disse ao Lula: ‘não tomo decisões baseado em hipóteses’. Então, se de fato vocês ganharem a eleição e quiserem conversar comigo depois…”

**A pressão de Lula para cortar os juros**

“Um dia, em 2007, véspera da reunião do Copom, Lula me ligou: “Meirelles, eu nunca te pedi nada”, ele começou. “É verdade”, eu respondi. “Pois hoje eu vou te pedir. Vou te pedir que corte os juros, porque senão nós não vamos crescer os 5% da nossa meta. Você precisa colaborar e baixar a taxa de juros.” “Não, presidente, não preciso. Nós vamos fazer a política monetária correta e o Brasil vai crescer mais do que 5%”, eu contra-argumentei. Lula então passou a repetir as opiniões de várias pessoas que estavam buzinando no seu ouvido, que o único entrave para o Brasil crescer era eu. Ouvi tudo em silêncio e encerrei a conversa da forma mais polida.”

**O pedido para deixar o governo Lula**

“Era maio de 2008, e concluí que era hora de ir embora. Havia um zum-zum-zum no mercado de que interlocutores do presidente estavam sondando possíveis nomes para o BC, e aquilo foi a gota d’água. Procurei o presidente Lula. “Presidente, a economia está muito bem, crescendo, inflação na meta, criamos empregos… para mim é o momento ideal para sair. E é um bom momento para o senhor também, porque vai ser uma mudança que não é por crise, nem por desentendimento, mas por um ciclo ter sido cumprido.” “Meirelles, você nunca me convidou para jantar na sua casa…”. Eu disse: “Ué, presidente, está convidado”. [Lula não foi ao jantar] Passou cerca de uma semana, tínhamos uma reunião juntos, e eu perguntei: “Presidente, e a minha saída?”. “Meirelles, nunca mais fale disso”, ele me respondeu.”

**O convite de Dilma**

“Em novembro de 2015, envolvido no lançamento do Banco Original, recebi um telefonema de Brasília. Não reconheci o número, mas atendi. “Meirelles, aqui é o Jaques. Gostaria de falar com você.” Eu reconheci o tom de voz: era Jaques Wagner, à época ministro- -chefe da Casa Civil do governo Dilma. O então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, estava na corda bamba, muito pelo fogo amigo do próprio governo petista, resistente às suas medidas para conter o déficit fiscal. Wagner chegou à minha casa, em São Paulo, por volta das 11h do dia seguinte. Wagner me disse que estava lá em nome da presidente Dilma Rousseff para me convidar para ser ministro da Fazenda. “Jaques, não vai funcionar. Eu e Dilma pensamos completamente diferente: eu acho que nós precisamos colocar um limite de gastos, ela acha que precisa gastar mais; eu acho que precisa fazer reforma da Previdência, ela discorda”, eu disse. “A essa altura, ela concorda com tudo o que você propuser”, respondeu Wagner. Ele fez uma ligação e botou Dilma no viva-voz. Ela estava numa reunião do G20 em Anatólia, Turquia. Conversamos francamente e ficamos de falar novamente quando ela retornasse ao país. Semanas depois da conversa com Dilma, Lula me telefonou reclamando por eu ter recusado o convite.”

**O convite de Temer**

“Na véspera da votação do impeachment, Temer me chamou para ir até o palácio do Jaburu, onde morava como vice-presidente, e me convidou oficialmente. Eu o avisei de algumas coisas duras que precisavam ser feitas, entre as quais o que viria a ser o teto de gastos, e outras reformas fundamentais. Ele concordou. Aceitar ser ministro da Fazenda em 2016 foi uma decisão mais simples do que a de aceitar ser presidente do Banco Central em 2002. Em ambos os casos, a situação do Brasil era muito ruim, mas o problema do Brasil em 2002 era a falta de moeda forte, o país estava insolvente na dívida externa; em 2016, o problema era fiscal.”

**Confronto com Mantega**

“Mantega afirmou peremptoriamente que o presidente Lula havia dado uma ordem para que o Banco do Brasil tivesse a exclusividade da operação [leilão de reservas. “Se ele deu essa ordem, ele está mal assessorado. Portanto, não vou seguir”, respondi. Decidimos então marcar uma reunião para resolver o impasse. A reunião foi marcada para o dia seguinte, na base aérea de Cumbica, em Guarulhos entre o presidente, Mantega e eu. Mantega colocou suas posições sobre a exclusividade do Banco do Brasil. “Isso é um erro”, retruquei. Depois de algum tempo de debate, o presidente Lula, que ouvia a nossa discussão, disse: “Vocês dois resolvem isso”. Eu aproveitei e me levantei também. “Então está resolvido, presidente. Bom final de semana. Bom domingo, ministro. Amanhã, às 9h, tem o leilão.” Mantega ficou sem reação.”

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