FOLHAPRESS – A poesia é mero detalhe em “Limonov: O Camaleão Russo”, cinebiografia para lá de cabeluda do poeta e ativista político Eduard Limonov. A literatura movimentou a vida do artista russo, mas seus escritos surgem pelas beiradas no filme, como se contrabandeadas para dentro de sua própria história.
É um poema entoado aqui, uma discussão com um editor ali, um sarau burguês acolá todas essas intervenções e encontros parecem uma distração a Limonov. Sua atenção está mesmo na revolução, na revolta dos oprimidos e marginalizados e na chance de derrubar o sistema.
Mas que autoridade ele combate? E de que lado ele está? Essas perguntas também são o de menos para o poeta, e a sua trajetória mais confunde que esclarece a sua posição.
Limonov foi muitas coisas, de renegado beatnik a expatriado perdido, passando depois por líder bolchevique e radical político na Rússia de Putin. A sua figura existe acima de tudo pela reação, seja lá a que ou a quem, e o resto vira nota de rodapé.
Esse espírito indomável domina as atenções no longa de Kirill Serebrennikov, que adapta o livro homônimo de Emmanuel Carrère sobre o artista. A trama resume a vida de Limonov como pode, dos anos 1960 ao começo dos 2000, sempre de olho em sua figura irascível. Ela tem um magnetismo próprio e inexplicável, afinal, que o artista modula de acordo com a ocasião, e o filme só ganha diante dessa complexidade.
Se o poeta foge da União Soviética na juventude para buscar a fama e o sucesso longe do regime stalinista, por exemplo, ele depois usa a mesma posição de exilado para confrontar o abismo social da Nova York dos anos 1970. O seu rosto nem treme diante da hipocrisia.
Depois, quando se vê encurralado pela grana, Limonov aceita trabalhar como mordomo de um ricaço, que usa a sua identidade de poeta como atração em festas. O patronato rende ao protagonista algumas reuniões com editoras americanas e artistas russos celebrados, mesmo que isso no fundo aumente a sua insatisfação sabe-se lá por qual motivo.
Mesmo a vida pessoal de Limonov é uma eterna espiral de turbulências. Só a definição mais elementar de loucura explica o momento em que o poeta, decidido a namorar a modelo russa Elena, corta os pulsos e usa o próprio sangue para pintar o hall do apartamento da garota. Tudo porque ele tem certeza de que a moça é o amor de sua vida, enquanto ela já tem um namorado para lá de alto e forte.
Limonov consegue a garota, mas a sua impulsividade o mergulha em nova crise alguns anos depois, já em Nova York, quando a paixão por Elena se esgota e ela o trai com um fotógrafo. Além de ameaçar o amante com uma faca, o poeta apela ao crossdressing e, vestido com as roupas da ex, implora por sexo a um morador de rua.
O prazer da submissão causa uma epifania e o ajuda a superar o mau momento emocional, mas termina como uma aventura pontual. “Todo homem deveria dar a bunda”, ele diz anos depois em uma coletiva que marca o seu retorno à Rússia.
Limonov é um camaleão, como o título brasileiro bem entrega, e a sua atração inexplicável pelo lugar do oprimido o define. O ator inglês Ben Whishaw carrega com afinco esse perfil complexo no papel do russo. A sua atuação desdobra as diferentes faces vestidas pelo artista, revelando detalhes da hostilidade do autor a cada nova identidade que ele inventa.
A boa sacada do filme é que nesse caminho ele também desdobra a história da Rússia, repercutida na vida do poeta mesmo que ele passe muitos anos fora do país. Artista e nação se transformam diversas vezes no decorrer dos anos, assim, e a metamorfose ambulante de Limonov iguala a de uma sociedade fragmentada.
O material serve bem a Kirill Serebrennikov, que andava patinando na carreira. Desde a sua promoção à mostra principal do Festival de Cannes com o bom “Verão”, sobre a cena do rock soviético, o cineasta russo estava perdido entre a afetação e o formalismo tradicional.
Os seus últimos trabalhos, o exagerado “A Febre de Petrov” e o aborrecido “A Esposa de Tchaikovski”, refletiam o interesse do diretor pela intersecção entre a identidade e a arte russa a passos tortos. “Limonov” nesse ponto casa melhor o exagero com o cuidado estético, ainda que hora ou outra caia no enfado.
Além disso, forma boa dupla com “Verão”, e os dois filmes são faces diferentes de uma mesma moeda estranha, muito russa por assim dizer. O longa de 2018 tinha artistas que sofriam por reproduzir hits de fora da União Soviética, mas eram impossibilitados de viver fora do mundo do regime.
Já Limonov, pelo menos no filme, passou a vida buscando o sucesso como artista global, mas depois agonizou para se reconectar com o próprio país. Até porque a Rússia mudou muito, inclusive até no nome outra semelhança entre poeta e nação que, de tanto martelada, pode passar batida ao espectador.
LIMONOV: O CAMALEÃO RUSSO
– Avaliação Bom
– Quando Estreia nos cinemas nesta quinta (17)
– Classificação 16 anos
– Elenco Ben Whishaw, Viktoria Miroshnichenko e Tomas Arana
– Produção França, Itália, Espanha, 2024
– Direção Kirill Serebrennikov