Governo deveria usar renda presumida para mapear vulneráveis, diz Paes de Barros

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A concessão de benefícios sociais pelo governo federal deveria seguir um critério de renda presumida das famílias, que leva em consideração não só os valores declarados, mas também as vulnerabilidades particulares de cada domicílio (como a educação dos adultos, se alguém está doente, se há desempregados), afirma à Folha de S.Paulo Ricardo Paes de Barros, considerado um dos pais do Bolsa Família.

Segundo ele, o Executivo tem informações detalhadas de 40,8 milhões de famílias inscritas no Cadastro Único de programas sociais, mas usa apenas a renda declarada para decidir se elas têm direito aos benefícios. No Bolsa Família, por exemplo, têm direito as famílias com renda de até R$ 218 por pessoa.

O recorte desconsidera outras vulnerabilidades que diferenciam famílias com a mesma renda, como raça, nível educacional, condições trabalhistas, posse de bens duráveis, local de moradia e doenças.

“O que a renda presumida faz é dar um melhor uso para a informação. Isso vai fazer com que a fila de vulneráveis seja mais fidedigna. Se um cara que está na rua e um cara que está numa casa me dizem que têm a mesma renda, obviamente o nível de vulnerabilidade é diferente”, afirma.

A questão tem relevância porque o CadÚnico é a porta de entrada para quase 2.000 programas sociais, incluindo Bolsa Família, BPC (Benefício de Prestação Continuada) e tarifa social da conta de luz. No futuro, também será referência para a devolução de tributos por meio do cashback.

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PERGUNTA – Qual sua avaliação do ponto em que estamos na tarefa de atualizar o Cadastro Único?

PAES DE BARROS – Todo mundo hoje já está convencido, ou devia estar, de que o Cadastro Único é de uma importância gigantesca para o Brasil. A outra coisa que todo mundo devia estar consciente é que ele não é perfeito.

O esforço do ministro [Wellington Dias, do Desenvolvimento Social] de chamar a atenção de alguns municípios é vital. Não é que alguém vai fazer alguma coisa mágica em Brasília e o Cadastro Único vai melhorar. E também não é que as pessoas possam fazer na ponta sem coordenação. A mensuração é feita localmente, mas os padrões têm que ser dados nacionalmente.

Tem que ter em mente que há muitos programas conectados ao Cadastro Único. Aquela informação é muito importante para o Luz para Todos, para o Bolsa Família, para o BPC.

Teve recentemente uma piora substancial no cadastro. Isso é muito evidente no número de famílias unipessoais [compostas por um único integrante]. Tradicionalmente, esse número é perto de 12%, 13% [entre beneficiários do Bolsa Família]. Ele foi para 29% em 2022. Agora está abaixo de 20%, mas ainda é um número alto.

P – Como corrigir isso?

PB – Uma coisa fundamental é um mapa da pobreza. A gente deve ser capaz de estimar quantas pessoas vulneráveis deveriam ser cadastradas em cada pequena área, que pode ser um município, um distrito, um bairro. Esse mapa não diz quem são os pobres, mas quantos pobres existem naquele lugar.

[Sem isso] O cara do Cras fica perdido, ele entra numa comunidade e fala ‘gente, para mim, todo mundo aqui é pobre, eu vou cadastrar todo mundo’. Se você disser pra ele ‘não, você tem que cadastrar as 100 famílias mais pobres’, aí ele fala ‘bom, então deixa eu olhar em volta, perceber quem são os mais pobres, porque me disseram que são 100’. São 100, mas você fala para cadastrar 150 [para ter uma margem].

Estudos que a gente fez no passado mostraram que isso tem um impacto gigantesco. Era a coisa que mais fazia o Cadastro Único original ser fidedigno.

P – A última estimativa da pobreza em cada local foi com base no Censo de 2010, mas já se trabalha em uma a partir do Censo de 2022.

PB – O Censo de 2022 pode dar essa informação, mas tem várias maneiras de atualizar isso ano após ano. Entre censos, existe uma metodologia que várias pessoas desenvolveram na Holanda, junto com o Banco Mundial, que chama poverty mapping [mapeamento da pobreza, em inglês].

Dá para atualizar ano a ano porque tem consumo de energia elétrica naquele lugar, consumo de água, vários outros indicadores. Não precisa esperar o próximo Censo. A nível de estado, pode calibrar usando a Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], que tem informação de renda melhor.

P – O que mais precisaria ser feito?

PB – A segunda coisa é que o agente local vá cadastrar as pessoas. Precisa ver a pessoa, conversar com ela, embora hoje tenha várias coisas eletrônicas que permitem o contato. Ninguém vai tirar ninguém da pobreza a distância.

Tradicionalmente, 20% dos cadastramentos têm que ser por visita domiciliar. Durante a pandemia, isso teve um retrocesso gigante, por boas razões, mas a gente tem que retomar. E não devia ser 20% presencial, devia ter até 80%. O risco de alguém que tem um contato contínuo com uma família ser enganado ou se confundir é mínimo.

P – Com essas medidas, dá para melhorar a qualidade do cadastro?

PB – Não adianta ter um cadastro muito bom e usar mal. Hoje o Brasil faz uma coisa muito esquisita, eu acho. O Cadastro Único coleta mais de 100 perguntas sobre um cadastrado, para não dizer da família dele, que aí vai multiplicar, e usa só a renda declarada.

Só o Brasil faz isso na América Latina. Todos os outros países criam uma mescla. Pega todas as informações do cadastro, inclusive a renda declarada, e cria uma renda presumida. A renda que ele ganhou nos últimos meses não é tão importante. O que importa é o grau de vulnerabilidade dele.

P – A renda presumida leva algum outro fator em consideração?

PB – A educação dos adultos, se eles estão trabalhando ou não, os bens duráveis que a família tem, se tem alguém doente, se tem mais negros ou mais brancos. Tudo isso vai ponderar de tal maneira que você vai presumir uma renda diferente para as famílias, apesar de terem declarado a mesma renda.

Vamos pegar a renda declarada e fazer uma série de correções para chegar mais perto daquilo que seria a renda normalmente recebida. E também suavizar eventuais erros de declaração.

P – Como se daria a aplicação dessa renda presumida?

PB – Eu tenho um mapa que mostra o número de famílias que [o cadastrador] vai visitar. Tem aquelas 150 [citadas no primeiro exemplo]. O estatístico trabalhou para saber qual o peso de cada pergunta. O dado vai para o computador, que calcula os pesos e ordena elas. Vão pegar as 100 mais pobres.

Só que acreditar na estatística pelo valor de face é meio complicado. O Cras está ali, na comunidade. Então, a equipe senta com o cadastrador e diz ‘olha, o computador diz que esses são os 100 mais pobres, o que você acha?’ e ele vai [poder] dizer ‘desculpa, mas esse 145º aqui é superpobre, não sei por que esse computador maluco está dizendo que ele é um dos menos pobres’. Sem problema. Vamos trocar a ordem dele. Ou seja, eu posso, dentro de alguns limites, reorganizar quem são os 100 mais pobres. Isso é o conhecimento da realidade mudando o conhecimento estatístico.

Aí deveria ir para uma coisa comunitária, por exemplo, o Conselho Municipal de Assistência Social. O conselho vai ver se essas trocas são legítimas ou não. Vai ter uma validação. Com isso, teria um cadastro de melhor qualidade.

A renda do Cadastro Único subestima a verdadeira renda em 25%, 30%. Se subestimasse a renda de todo mundo uniformemente em 30%, não seria problema nenhum. O problema é que tem lugares no Brasil fazendo o cadastro muito bem feito e tem lugares que não.

O que a renda presumida faz é dar um melhor uso para a informação. Isso vai fazer com que a fila de vulneráveis seja mais fidedigna. Se um cara que está na rua e um cara que está numa casa me dizem que têm a mesma renda, obviamente o nível de vulnerabilidade é diferente. Normalmente, o cadastro não leva isso em consideração.

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RAIO-X | RICARDO PAES DE BARROS, 69

Nascido no Rio (RJ), é graduado em engenharia eletrônica pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), mestre em estatística pelo Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Possui pós-doutorado pelas universidades de Chicago e Yale. Foi servidor de carreira do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e integrou a equipe que criou o Bolsa Família, em 2003, no primeiro governo Lula. Desde 2015, é professor e pesquisador no Insper.

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