Força de Milton Nascimento é do espírito, diz Esperanza Spalding ao lançar disco

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Nos interlúdios entre as canções de “Milton + Esperanza”, Milton Nascimento e Esperanza Spalding aparecem rindo e conversando com leveza. Aqueles pequenos fragmentos de intimidade, ela conta, são testemunhos do que foi o período de gravação do álbum, que chega sexta-feira (9) às plataformas de streaming.

“Era meio ridículo, parecia que nós não estávamos tão focados em gravar um disco”, diz a cantora, compositora e instrumentista americana. “Poderíamos estar fazendo qualquer coisa: conversando, vendo um filme, contando histórias… Era quase como se trabalhar no disco fosse uma interrupção do ato de estarmos juntos, simplesmente”.

Coerentemente, um dos dias da gravação que ela lembra com mais carinho foi quando faltou luz e eles não puderam gravar. “Usamos nossos iPhones e laptops até acabar a bateria, apenas ouvindo música. Sarah Vaughan, Wayne Shorter… Apenas amigos passando um tempo juntos”.

A leveza, Esperanza lembra, contrastava com o peso da responsabilidade de gravar o disco com o ídolo. “Ele pôs uma enorme confiança em mim para gravar sua voz, escrever os arranjos”, ressalta a compositora.

“Milton + Esperanza” é o mais novo capítulo de uma história que teve seu início quando a jovem Esperanza, num jantar com amigos brasileiros, ouviu pela primeira vez a voz do cantor. Era o disco “Native Dancer”, de Wayne Shorter com o brasileiro, lançado em 1975. Anos depois, ela conheceu Milton no Brasil.

O cantor lembra da impressão que Esperanza lhe causou. “Desde a primeira vez em que nos encontramos, eu já tinha certeza de que estava diante de um ser muito especial. Não consigo separar a artista fantástica dessa pessoa maravilhosa que ela é fora dos palcos”, diz Milton. “E, musicalmente, ela traz a mesma luz de dois irmãos que a música me deu, e que são importantes para mim com a mesma intensidade que são para ela, Wayne Shorter e Herbie Hancock”.

Em 2010, eles gravaram juntos pela primeira vez —ele canta “Apple Blossom” no disco “Chamber Music Society”, da americana. Desde então, uniram forças algumas vezes, uma delas no Rock In Rio em 2011.

As músicas de Milton presentes no novo álbum são os clássicos “Cais”, “Outubro”, “Morro velho” e “Saudade dos Aviões da Panair”, além da inédita “Um Vento Passou”, que o brasileiro compôs para Paul Simon. O americano participa da faixa.

O disco inclui também canções de Esperanza, como “Wings For the Thought Bird” e “Get It By Now”, e releituras de músicas de outros artistas, como “Saci”, de Guinga e Paulo César Pinheiro; “A Day in the Life”, dos Beatles; e “Earth Song”, de Michael Jackson.

O álbum traz outros convidados além de Simon. Guinga canta e toca em “Saci”; Diane Reeves está em “Earth Song”; Maria Gadú, Tim Bernardes, Lula Galvão e Lianne La Havas reforçam “Saudade dos Aviões da Panair”; a Orquestra Ouro Preto participa em “Morro Velho” e “Wings for the Thought Bird”, que traz também Elena Pinderhughes.

A proposta do disco veio de Augusto Nascimento, filho de Milton e administrador de sua carreira. A cantora era convidada especial dos shows da turnê de despedida do cantor em Nova York e Boston. “Quando chegamos a Boston, fomos jantar”, conta Esperanza. “Milton estava em seu quarto, eu estava no bar com seu filho que, do nada, disse: ‘Você devia produzir o próximo disco do meu pai’”.

Quando ela entendeu que ele falava sério, começou a planejar como seria o álbum, escrever os arranjos e pensar nos músicos que gostaria de ter e como financiar tudo. Além de, claro, escolher o repertório —tarefa nada fácil.

“É impossível escolher”, afirma ela. “Então você meio que tem que se comprometer com o que aparece com mais força naquele momento. E “Cais”, “Outubro” e “Morro Velho” não saíam da minha cabeça. Muitas, na verdade. Mas tive que pensar em qual eu poderia contribuir com algo”.

“Earth Song” e “A Day in the Life” foram escolhas de Milton. “Michael Jackson e Beatles estão entre as minhas grandes paixões musicais”, conta o mineiro. “A Day in the Life” entrou naturalmente no repertório “de tanto que eu escuto”, brinca o cantor. Já “Earth Song” estava na sua mira há anos. “Ela era pra ter feito parte do set list de algumas das turnês que eu fiz. Mas eu sempre fui deixando pra próxima. A hora pra isso acontecer, agora, não poderia ter sido mais especial”.

Há duas músicas no disco que Esperanza achava que a princípio não deveriam estar lá. “Não vou contar quais”, diz ela. Mas ela defende que é bom que elas acabaram entrando: “É importante ser ousado e não buscar ser tão perfeito e correto”. Lição que ela conta ter aprendido com seus mestres.

“Algo disso era inspirado pela energia de Wayne (Shorter) e de muitos dos discos antigos de Bituca, onde parecia que eles punham ali tudo que estavam pensando. Não tentaram limpar. ‘Oh, isso é muito esquisito’. Eles entregaram tudo, nada ficou retido. Então, tudo nesse nosso disco representa o que estava vivo, acontecendo, nos inspirando no momento em que gravamos. É uma amostra sincera do que vivemos ali”.

Aos 81 anos, Milton Nascimento não mostra, naturalmente, a potência vocal de seus discos clássicos. Mas Esperanza avalia que, na verdade, isso é desimportante quando se trata da grandeza de um canto como o dele. “Para mim, o conceito de ‘força’, na música tem a ver com o fato de você ser capaz de provocar um impacto no ouvinte. É uma eficácia. E nesse sentido, Milton não perdeu nada”.

A cantora vai além e diz que ouvir Milton cantar aos 80 anos nos ajuda a entender a magia de sua voz. “Percebemos que não era a altura, não era o falsete, não era a agilidade, não era a clareza. Sempre foi o espírito. Pensávamos que era a técnica, a potência, mas era ele. Milton contando a história de ‘Morro Velho’ aos 80…. Você pode ter 30 anos, com toda a força do mundo, e não consegue aquilo. Isso é força? É falta de força? Não sei, eu apenas sinto”.

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