SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – A marcha da Coluna Prestes, iniciada há cem anos, ficou conhecida pelas alcunhas de invicta e invencível. Mas as tropas lideradas por Miguel Costa e Luís Carlos Prestes enfrentaram percalços nas três incursões que fizeram pela Bahia, lidando com a força de coronéis, a ira dos jagunços e a resistência dos sertanejos.
O movimento foi iniciado em 28 de outubro de 1924 pelo 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo (RS), que se uniu a tropas de outros estados em uma marcha que percorreria 25 mil km pelo país em três anos. Os militares contestavam o regime político de oligarquias e o governo do presidente Artur Bernardes.
Naquele início dos anos 1920, a Bahia vivia um período de turbulência política. A eleição de José Joaquim Seabra para o governo insuflou os oposicionistas, que anunciaram uma marcha dos coronéis do sertão para tomar a capital o episódio ficaria conhecido como a Revolta Sertaneja.
O presidente Epitácio Pessoa decretou intervenção, mas pavimentou a posse de Seabra. No cargo, o governador assinou o “Convênio de Lençóis”, anistiando os revoltosos e entregando as administrações municipais aos coronéis.
O acordo deu musculatura aos chefes políticos que dominavam o sertão da Bahia, que vivia um período de prosperidade com mineração de diamante e ouro, o extrativismo da borracha e a implantação de ferrovias.
Dentre eles estava Horácio de Matos, coronel que ganhou terreno na Chapada Diamantina onde dominava 11 cidades, incluindo Lençóis ancorado por um grupo paramilitar. Com tamanha influência política, ascendeu e passou a ser chamado de o “governador do sertão”.
Ao seu lado, formavam uma espécie de cinturão no sertão baiano proprietários de terras, chamados coronéis, como Franklin Lins de Albuquerque, Abílio Wolney e Deocleciano Teixeira.
Com o avanço da Coluna Prestes, o presidente Artur Bernardes ofereceu apoio no combate aos insurretos. Assim foram criadas unidades militares como o Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas, formado por 1.500 homens dentre jagunços e soldados de tropas regulares.
“Os coronéis são apresentados como legalistas, mas era uma relação de troca. Os grupos paramilitares são incorporados às forças regulares e participam da luta contra a coluna em troca de munição, armas e patentes”, explica o historiador Flávio Dantas Martins, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia.
A marcha entrou em território baiano pela primeira vez em setembro de 1925, após atravessar o rio Carinhanha. Percorreu uma pequena faixa da região oeste do estado, retornando para Goiás.
Os soldados retornariam em fevereiro de 1926, quando, cercados por forças governistas em Pernambuco, decidiram atravessar o rio São Francisco. Em meio a uma cheia histórica, cruzaram o leito em canoas, deixando a maioria dos cavalos para trás.
Na Bahia, cerca de 1.200 homens palmilharam em meio a áreas de caatinga, abrindo picadas e enfrentando condições adversas. Aprisionaram moradores para servir como guias e atacaram guarnições da polícia.
Atravessaram a Chapada Diamantina sem obter apoio nas cidades e povoados, que esvaziavam ante a chegada da marcha. Evitavam confrontos com as tropas do governo, mas deixaram um rastro de localidades saqueadas e incendiadas.
A marcha deixou a Bahia em 19 de abril e se deparou com batalhões legalistas em Minas Gerais. Encurralado, Prestes liderou a manobra militar que ficaria conhecida como “laço húngaro”, fazendo a marcha seguir em sentido contrário, paralelamente ao caminho percorrido, enganado os inimigos.
Sem esperanças de sucesso na empreitada da marcha, os revoltosos voltaram à Bahia em 1º de maio, iniciando uma caminhada para chegar a Goiás, atravessar Mato Grosso e seguir em direção à Bolívia. Mas o caminho não seria fácil.
“A jagunçada redobrou a violência dos ataques”, escreveu Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna, destacando um cenário de marcha forçada, com os inimigos no encalço.
Os principais alvos eram as potreadas, grupos táticos que se afastavam da coluna para conseguir comida e montarias.
João Alberto Lins de Barros, um dos comandantes de coluna, lembrou das tocaias enfrentadas neste período: “Não podíamos atravessar uma pequena aldeia, uma fazenda importante, ou mesmo acampar numa boa aguada, sem pagar tributo de sangue”.
Uma dessas emboscadas foi em Canabrava do Gonçalo, atual Uibaí (a 500 km de Salvador). Em 13 de maio de 1926, a marcha maltrapilha, com cerca de 300 combatentes, entrou no povoado com seus lenços vermelhos. Foram repelidos por cinco homens armados, que estavam de tocaia no alto de uma serra.
Dias antes, a coluna havia sido surpreendida com um ataque em Mucugê. Os tiros partiram de diversos pontos da cidade, inclusive do cemitério, resultando em baixas. O episódio ficaria conhecido como o Fogo de Mucugê ou Combate da Volta do Morro e é apontado como um ponto de enfraquecimento da coluna, que teria na cidade uma base para se reabastecer e recobrar as forças.
Mas nem só embates marcaram a marcha na Bahia. Na cidade de Central, a jovem Francisca Ferreira Rocha foi até o acampamento da coluna e reclamou com o general Miguel Costa após ter dez éguas e uma caixa de joias saqueadas. Intrigado, ele teria ordenado a devolução dos animais, conforme diz a própria Francisca em depoimento à pesquisadora Mariene Martins Maciel.
“Os sertanejos são vistos como pessoas simples que eram manipuladas pelos coronéis. Mas, na perspectiva e memória dos próprios participantes, eles estão defendendo o seu território de invasores”, afirma o historiador Flávio Dantas Martins.
A Coluna Prestes deixaria a Bahia em julho de 1926 rumo à Bolívia, sendo perseguida até a fronteira pelos homens de Horácio de Matos. Prestes viveu em exílio no país vizinho, período em que se aproximou do Partido Comunista.
Os coronéis se fortaleceram no jogo das forças políticas na Bahia. O brasilianista Eul-Soo Pang, em “Coronelismo e Oligarquias”, aponta que os chefes locais começaram a passar por cima dos governadores em questões políticas e militares, abalando a espinha dorsal do sistema oligárquico.
A implosão da Primeira República viria em 1930, com a revolução tenentista liderada por Getúlio Vargas. O novo governo prenderia o coronel Horácio de Matos, assassinado cinco meses depois por um policial nas ruas de Salvador. Era o fim a uma era nos sertões da Bahia.