SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Erika Kelly da Silva, 43, se lembra de ouvir o então ministro da Economia, Paulo Guedes, fazer um comentário sobre a sua profissão.
“Eu achei um desrespeito com as pessoas que fazem o meu trabalho”, diz ela.
Há cinco anos, em 12 de fevereiro de 2020, no Seminário de Abertura do Legislativo 2020, Guedes disse que o dólar, já em alta, era bom para a economia. E deixou claro que o câmbio não voltaria ao patamar de R$ 1,80.
“Vamos exportar menos, substituição de importações, turismo, todo mundo para a Disneylândia Empregada doméstica indo para a Disneylândia, uma festa danada. Pera aí, pera aí, pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu. Vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear o Brasil, vai conhecer o Brasil, entendeu? Está cheio de coisa bonita para ver”, discursou.
Foi uma das frases mais polêmicas dos seus quatro anos à frente da economia do país. Naquele dia, o dólar estava a R$ 4,33. Nesta terça-feira (10), fechou a R$ 5,77.
Erika se lembra da declaração como um momento triste. E ela é uma raridade. Trata-se de doméstica que já foi a Orlando e à Disney.
“Viajei em 2016. Mas foi uma situação muito especial. Caso contrário, não iria. Tenho muita vontade de voltar, mas não tenho nenhuma condição”, afirma.
Ela foi acompanhando a família para a qual trabalhava na época, em Belo Horizonte.
“É a única situação em que uma doméstica pode viajar para a Disney. Basta olhar o salário. Se dormir no emprego, ganha um pouco mais. Se é babá e tem plantão, ganha também um pouco mais. Mas mesmo assim, não tem nenhuma condição”, explica.
O piso atual de doméstica em São Paulo, para uma jornada de 44 horas semanais, é de R$ 1.550,59.
Em fevereiro de 2020, o pacote para cinco dias em Orlando, na Flórida, onde fica a Disney World, custava cerca de R$ 10 mil para duas pessoas. Operadoras de turismo como a CVC oferecem a mesma viagem para este mês por R$ 9.915. Mas neste valor não estão incluídos os ingressos para os parques. Cada um sai por cerca de R$ 700 por dia.
Procurado pela reportagem, Paulo Guedes não quis se pronunciar sobre a declaração de cinco anos atrás.
No seu discurso de 2020, ele tentou explicar em seguida que não se referia apenas a domésticas. “O ministro diz que o câmbio está tão barato que todo mundo estava indo para a Disneylândia, até as classes sociais mais [baixas]”, completou, para finalizar que todos têm de ir ao local “conhecer um dia, mas não três, quatro vezes por ano.”
“Essa fala reflete como a sociedade e o governo elitista veem a categoria. Só reafirma um estereótipo. Foi uma fala de desvalorização do trabalho doméstico, não visto como algo essencial para a sociedade brasileira”, afirma Nathalie Rosário, advogada do Sindoméstica (Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo).
Duas semanas após o discurso de Guedes, surgiu o primeiro caso de Covid-19 em São Paulo. No mês seguinte começaram as medidas de isolamento social. A categoria das domésticas até hoje não se recuperou da pandemia.
A estimativa é que ainda falte recuperar 700 mil postos de trabalho. O número de 6,3 milhões de profissionais no país não foi restabelecido. Pior ainda se tornou a informalidade. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), esta chega a 77%. A cada 10 trabalhadoras ou trabalhadores no setor, apenas três estão no regime CLT.
“A maioria está marginalizada e sem benefícios como vale-alimentação, cesta básica, assistência médica Beira a insanidade pensar que uma doméstica, com um salário tão baixo, com condições tão ruins de trabalho, possa pensar em um momento de lazer fora do país. A gente percebe no convívio com essas trabalhadoras que faltam até questões de higiene. É loucura achar que elas tenham acesso a qualquer lazer”, completa Nathalie.
No ano passado, a alta do câmbio não diminuiu o turismo na Flórida e, por consequência, na Disney. Segundo dados do Visit Florida, foram 1,1 milhão de brasileiros no estado em 2024, um crescimento de 8% em relação a 2023. Apenas Canadá e Reino Unido mandaram mais turistas para a região.
“Mudou muito o cenário. A viagem para Orlando era muito diferente a R$ 1,80. Além do dólar a R$ 6, temos também a inflação americana, que aumentou o valor dos produtos em dólar. As pessoas continuam viajando, temos muitos brasileiros aqui, mas aquela pessoa que viajava uma vez por ano, agora viaja em um espaço de tempo maior”, analisa Diego Talberg, CEO da CDO Travel, especializada em turismo de brasileiros na Orlando-Disney.
São números que estão fora da realidade para Erika, mesmo que ela não trabalhe mais como doméstica. Hoje em dia ajuda o marido na empresa dele, que faz plataformas para caminhões. Ela guarda fotos e lembranças da viagem para Disney. Mas nos dias que passou nos Estados Unidos tinha um constante pensamento: o quanto gostaria de levar os dois filhos, que ficaram no Brasil.
“Foi uma viagem muito boa, mas eu ficava o tempo todo imaginando como seria se conseguisse trazer meus filhos comigo. Mas mesmo hoje, não dá, não é?”