FOLHAPRESS – Originário nas letras britânicas no século 18, numa resposta da imaginação ao excesso de racionalismo do período, o gótico deixou de ser um subgênero narrativo para se tornar uma forma de expressão. Não mais apenas histórias ambientadas em castelos, com cavaleiros e damas em perigo e presenças de fantasmas ou maldições, mas agora um conjunto linguístico de formas estéticas marcadas por elementos considerados negativos, como ansiedade, medo e aflição, em locais de histórico opressivo.
Muito disso foi incorporado ao cinema a partir do século 20 e, hoje, o imaginário gótico é compreendido na ficção de forma bem mais ampla do que nas suas origens. “A Herança”, longa-metragem de estreia do carioca João Cândido Zacharias, segue pela vertente das chamadas “poéticas do mal”, termo do professor Julio França em pesquisas sobre o assunto na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e tem no gótico expressivo boa parte de sua fatura estética, transfiguradas para a linguagem audiovisual.
Essa construção aparece no filme de maneira espontânea, à medida em que a condução narrativa apresenta cuidadosamente a atmosfera dramática, saindo de um cotidiano de situações ordinárias para uma ambientação geográfica e afetiva de horror.
O jovem Thomas, vivido por Diego Montez, é um imigrante brasileiro na Alemanha que precisa voltar ao Brasil por conta da morte da mãe, com quem ele não tinha relações desde criança. Com o namorado Beni, papel de Yohan Levy, o rapaz visita a casa onde nasceu, numa região rural da qual não se lembra, e é informado de que a mãe fugiu com ele dali ainda bebê.
Os motivos disso, e o que faz as duas tias, interpretadas por Analu Prestes e Cristina Pereira, insistirem tanto para que Thomas permaneça na casa, são desvendados aos poucos e guardam segredos bastante sinistros. O espectador versado no gênero pode captar rápido o que está acontecendo, mas mesmo elementos mais convencionais são tratados num suspense crescente bem encaminhado pela direção elegante de João Cândido.
Isso porque “A Herança”, escrito pelo diretor junto ao roteirista Fernando Toste, é evidente fruto da paixão genuína e dedicada de ambos pelo horror gótico, principalmente italiano, integrado a uma série de elementos que servem ao cenário maior. Tem o melodrama, concentrado no casal de homens em dúvida sobre o próprio futuro, e os mistérios de um passado secreto, que se descortina para o protagonista ao mesmo tempo que para o espectador, fazendo com que cada lance em cena seja uma surpresa.
Ou então as fantasmagorias femininas, que podem ou não ser sobrenaturais, casos da misteriosa avó, papel de Gilda Nomacce, e da jovem empregada da casa, interpretada por Luiza Kozowski. E, claro, o próprio casarão colonial como personagem central nos desdobramentos horríficos, tanto pelo aspecto envelhecido de portas e paredes ou retratos quanto nas passagens secretas e tumbas subterrâneas.
Certa frustração com o desenlace de “A Herança” vem justamente por tantos elementos estimulantes de pegada mais clássica que, se não são inéditos na produção brasileira, têm sido pouco usados em tempos recentes justamente pelo caráter mais próximo de um horror convencional, que remete à produção dos Estados Unidos.
Depois de todas as maquinações da trama e da queima lenta rumo à explosão, a resolução surge um tanto abrupta, com muita coisa acontecendo num curto espaço de duração do filme. Ainda que haja força em várias das imagens, ótimos efeitos visuais e boa tensão, fica o sentimento de que algum ritmo frenético poderia ter ocupado também outros momentos do filme.
Ainda assim, “A Herança” se sustenta como ótimo exemplar de horror comercial à brasileira, podendo se enquadrar inclusive no que costumo chamar de “terror de shopping”, que volta e meia tem seus exemplares de destaque e garante a presença constante de público num gênero sempre popular.
A HERANÇA
– Avaliação Bom
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Diego Montez, Yohan Levy, Analu Prestes e Cristina Pereira
– Produção Brasil, 2024
– Direção João Cândido Zacharias