SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A missão estava programada para durar pelo menos oito dias, talvez um pouco mais. Mas a essa altura os astronautas americanos Sunita Williams e Barry Eugene Wilmore, da Nasa, já passaram dois meses no espaço e a temporada pode se estender a oito ou nove meses, por conta de problemas com a cápsula CST-100 Starliner, da Boeing.
Não é a primeira vez que circunstâncias levam tripulantes a permanecer longos períodos em órbita, em missões atipicamente longas.
Se há algo na história da exploração espacial em que se viu uma evolução constante é na duração da estadia de humanos no espaço. As primeiras missões, no início dos anos 1960, limitavam-se a minutos, no menor dos casos, ou uns poucos dias, no maior deles.
As restrições basicamente são duas. A primeira é que o corpo humano não foi feito para permanecer longos períodos de imponderabilidade a sensação de ausência de peso gerada pelo movimento orbital. (É errado pensar que os astronautas estão, nessas circunstâncias, sob gravidade zero; eles estão em permanente queda livre, mas a espaçonave em que se alojam também, de forma que, uns em relação à outra, parecem não sentir a força gravitacional os comprimindo na direção do chão.)
Essa situação causa diversas mudanças fisiológicas, como a redistribuição de fluidos pelo corpo (nosso sistema circulatório é feito para bombear sangue para cima, contra a gravidade, e quando ela se torna imperceptível ele bombeia com mais força para a porção superior do corpo do que o necessário) e perdas ósseas e musculares (já que ambos precisam trabalhar muito menos sob ausência de peso). Fora esses efeitos macro, também há consequências em nível celular, e o metabolismo como um todo passa por alterações. Diversos problemas de saúde, de osteoporose a prejuízos à visão, já foram identificados, e os estudos prosseguem.
Há também uma preocupação com o ambiente de radiação no espaço, que pode submeter astronautas a doses muito maiores do que as que afetam funcionários de usinas nucleares. Contudo, esse é um problema mais relevante para voos além da órbita terrestre baixa dos quais até hoje só tivemos nove, durante o programa Apollo, quando astronautas viajaram às imediações da Lua. Nas imediações da Terra, a despeito da ausência de atmosfera apreciável, o campo magnético do planeta oferece proteção relevante.
O segundo fator a limitar a permanência no espaço é mais óbvio e previsível: a limitação de suprimentos. É preciso haver alimentação, ar e água disponível para os astronautas pelo tempo que forem ficar lá em cima. Em uma cápsula pequena, isso é um limitante crucial; em uma estação espacial, com ciclos fechados de reúso de água e ar, além de reabastecimentos constantes, o problema é facilmente contornado é o que viabiliza hoje a longa estadia de Williams e Wilmore na Estação Espacial Internacional (ISS).
Com o advento dos laboratórios e estações espaciais, a partir dos anos 1970, as estadias padrão de tripulações foram se estendendo. Hoje, oscilam tipicamente entre 4 e 6 meses, período considerado adequado para manter sob controle os impactos fisiológicos de permanência no espaço, principalmente com exercícios físicos.
Contudo, em algumas ocasiões, por vezes de propósito, para fins científicos, outras por acidente, tripulantes acabaram precisando ficar mais de seis meses de uma vez em órbita. Confira a seguir alguns casos emblemáticos.
**17,7 dias – Andriyan Nikolayev e Vitaly Sevastyanov (URSS, 1970)**
Os dois cosmonautas soviéticos bateram na ocasião o recorde de permanência no espaço, passando quase 18 dias em órbita, a bordo da cápsula Soyuz 9.
Este segue sendo até hoje o recorde de voo espacial mais longo em uma espaçonave solo, ou seja, sem acoplagem com outro veículo em órbita, e ilustra bem os limites dos suprimentos embarcados em uma cápsula.
**84 dias – Gerald P. Carr, Edward G. Gibson, William R. Pogue (EUA, 1973-1974)**
Com o laboratório espacial Skylab, visitado por uma cápsula Apollo, o trio estabeleceu o recorde americano de estadia contínua até o estabelecimento do programa Shuttle-Mir, que permitia visitas de ônibus espaciais americanos à estação espacial russa Mir, a partir de 1996.
**188,1 dias – Shannon Lucid (EUA, 1996)**
Ao ser a primeira astronauta americana a passar uma temporada na estação russa Mir, indo até lá no ônibus espacial Atlantis, Lucid estabeleceu o recorde de maior estadia de uma mulher no espaço até então.
A marca não seria superada até 2007, já no programa da Estação Espacial Internacional, quando foi quebrado pela americana Sunita Williams, que permaneceu por lá por 192 dias (a mesma que agora está na ISS depois de realizar a missão de teste do Starliner).
**311 dias – Sergei Krikalev (URSS-Rússia, 1991-1992)**
Apesar de não ter estabelecido novo recorde, esta talvez seja a história mais peculiar de um cosmonauta “preso no espaço”.
Quando Krikalev subiu à órbita na Soyuz TM-12, em maio de 1991, era um orgulhoso cidadão da União Soviética.
Durante sua estadia na Mir, em dezembro de 1991, seu país deixou de existir, e ele passou a ser cidadão russo. Contudo, seu retorno à Terra ocorreria em outro país, antes república soviética, o Cazaquistão. Isso causou grande incerteza sobre a missão, e ele acabou tendo seu retorno adiado.
No fim, a missão durou quase o dobro do originalmente planejado.
**365,9 dias – Vladimir Titov e Musa Manarov (URSS, 1987-1988)**
Pela primeira vez, uma dupla de cosmonautas passa um ano inteiro em órbita, de 1987 a 1988, a bordo da estação espacial soviética Mir.
**340 dias – Scott Kelly e Mikhail Kornienko (EUA e Rússia, 2015-2016)**
Com os avanços propiciados pela Estação Espacial Internacional, americanos e russos se propuseram a realizar um novo e sofisticado estudo dos efeitos de viagens espaciais de longa duração, com uma missão de aproximadamente um ano.
O estudo da Nasa tinha uma sofisticação adicional: Scott Kelly seria comparado antes, durante e depois da viagem com seu irmão gêmeo, Mark Kelly, também astronauta.
Testes genéticos mostraram que até mesmo a expressão de seus genes mudaram durante a viagem, em contraste com a do irmão.
**371,8 dias – Frank Rubio, Sergey Prokopyev e Dmitri Petelin (EUA e Rússia, 2022-2023)**
O trio subiu ao espaço a bordo da cápsula russa Soyuz MS-22 em 21 de setembro de 2022, mas, em 15 de dezembro daquele ano, foi detectado um vazamento de líquido de refrigeração da espaçonave, enquanto estava acoplada à Estação Espacial Internacional.
Ficou evidente que ela não poderia retornar em segurança com a tripulação, o que levou à decisão de estender a estadia do trio até o envio de uma nova Soyuz (MS-23), vazia, para resgatá-los. Com isso, Rubio, em seu primeiro voo, tornou-se o recordista de estadia americana no espaço, com quase 372 dias.
Estudos iniciados por conta desse episódio, que aventavam o uso da Crew Dragon da SpaceX para o retorno de Rubio em caso de emergência, acabaram sendo úteis na formação do plano de contingência da Nasa para o retorno de Williams e Wilmore.
**437,7 dias – Valeri Polyakov (Rússia, 1994-1995)**
Até hoje esse é o recorde de maior estadia ininterrupta no espaço.
Ocorrido ainda na estação espacial russa Mir, ele tinha por objetivo demonstrar a resistência humana em voos espaciais de longa duração, com a perspectiva de que um dia uma tripulação viajaria até Marte, numa jornada de ida e volta que duraria mais de dois anos.
Voluntário para o teste, o cosmonauta, ao retornar, optou por não ser carregado por alguns metros entre a cápsula Soyuz e uma cadeira próxima, fazendo o trajeto caminhando. Ele queria provar que humanos poderiam trabalhar na superfície de Marte mesmo depois de um longo trânsito até lá sob ausência de peso.