Americanas deu incentivo para ex-executivos que fizeram delação premiada

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando os ex-executivos da Americanas Marcelo Nunes e Flavia Carneiro decidiram fazer delação premiada no caso do escândalo da varejista que estourou no ano passado, a companhia lhes ofereceu um Programa de Incentivo à Colaboração, o chamado PIC —um tipo de acordo que ficou mais conhecido no Brasil a partir da Lava Jato.

A iniciativa da empresa deve começar a ser questionada pela defesa de ex-diretores investigados, com pedidos para a publicação de detalhes do acordo.

A informação sobre a existência do PIC com Nunes e Carneiro não foi divulgada ao mercado. Procurada pela reportagem, a Americanas não revela os termos, se envolveu valores em dinheiro ou outro tipo de benefício nem a quantia. O advogado dos delatores, Davi Tangerino, também não comenta o assunto.

Celso Vilardi, advogado do conselho de administração e também da empresa, disse à reportagem que a Americanas fez o PIC após receber o contato do advogado de Nunes e Carneiro, “com a premissa que os colaboradores deveriam buscar as autoridades (Ministério Público Federal e Comissão de Valores Mobiliários) esclarecendo toda a verdade, independentemente dos envolvidos”.

Em nota, ele afirma que a decisão foi tomada com base em casos aprovados por outras empresas de grande porte no passado. Segundo Vilardi, a medida também foi tomada porque era necessário reconstituir o balanço da companhia, sem o qual a sobrevivência da rede poderia estar em risco.

“O fato não foi divulgado porque, nos termos da lei, qualquer colaboração deve permanecer sigilosa até determinação em contrário do MPF e o nome dos possíveis colaboradores não poderia ser revelado, sendo certo que as delações só foram conhecidas por ocasião da operação efetivada pela Polícia Federal”, diz Vilard.

“Os colaboradores entregaram à companhia planilhas com os números relativos ao risco sacado e o VPC [verba de propaganda cooperada] falso, o que foi fundamental para refazer as demonstrações financeiras.”

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que a indenização de delatores por empresas é uma prática aceita no país. Eles não comentam o caso específico da Americanas, mas apontam que, em linhas gerais, a iniciativa costuma gerar questionamentos.

Esse tipo de expediente foi adotado por empresas como a CCR em 2019, cujo programa de incentivo aprovou pagamentos mensais por cinco anos em indenizações para 15 ex-funcionários delatores, em um total de R$ 71 milhões, sem contar despesas com multas e advogados.

No caso da Odebrecht, que se comprometeu a pagar remuneração mensal indenizatória de R$ 15 mil a R$ 134 mil a ex-executivos, a defesa de Lula questionou a credibilidade das declarações.

O tema do pagamento de delatores por empresas chegou a ser levado a discussão em um órgão da Procuradoria-Geral da República na época. Segundo o MPF, “a 5ª Câmara de Combate à Corrupção informa que não existe nenhum normativo sobre o tema”.

Para Vinicius Vasconcellos, professor de processo penal da USP e advogado, autor de livros sobre acordos na justiça criminal, a questão ainda não foi debatida com atenção no Brasil.

“Em visão geral, não há ilegalidade no fato de as empresas pagarem seus funcionários ou fazerem acordos com eles, por exemplo em casos de rescisão, demissão etc. Contudo, se forem colaboradores, pode haver certa desconfiança quanto a possíveis conflitos de interesses, pois o funcionário, além de receber benefícios do estado ao firmar acordo de colaboração premiada, também receberá da empresa, para manter uma versão provavelmente favorável à empresa”, afirma.

“Isso pode ser questionado, de certo modo, por outros réus, delatados, e o Judiciário deverá ter cuidado maior ao valorar declarações desses colaboradores.”

Também especialista na área, Edward Carvalho, sócio do escritório Miranda Coutinho, Carvalho & Advogados e conselheiro da OAB-PR, afirma que a ideia do PIC e da remuneração nele prevista é compensar o colaborador pelos impactos que ele sofrerá em sua carreira, já que terá dificuldade em se recolocar no mercado de trabalho, diante das regras de compliance.

“Para a empresa, pesa-se o custo-benefício de tal remuneração, porque com a conduta do colaborador, ela poderá seguir adiante e, de certa forma, fazer isso valer a pena aos acionistas, que verão os danos de uma investigação ou processo limitados, além de, eventualmente, buscar ressarcimentos por eventuais condutas de terceiros”, diz.

Frederico Horta, sócio do escritório Pacelli & Horta e professor da UFMG, ressalta a necessidade de transparência no procedimento. Para ele, é fundamental que a informação de que essa colaboração foi feita mediante remuneração seja levada às autoridades. Segundo ele, o pagamento não compromete a validade do testemunho, mas é importante que o juiz tenha ciência disso para a formação de sua convicção, assim como os delatados, para a ampla defesa.

“Não digo que seja necessária a transparência plena a todos. Deve haver certa restrição desses planos, a bem das investigações e das próprias testemunhas, que muitas vezes têm cláusulas de proteção. Mas observadas tais restrições, essas cláusulas têm de estar à disposição dos investigadores públicos e do juiz, seja no inquérito ou no procedimento investigativo, na fase pré-processual, seja no processo. Seja o MP, a Polícia, o juiz, o acusado, precisam ter acesso. É fundamental nesses incentivos, sob pena de se discutir a legitimidade da prova”, diz Horta.

Para Aurélio Valporto, da Abradin (associação de investidores), a publicação dos termos em que o acordo foi fechado deveria ser obrigatória, já que o ato tem potencial de influenciar negociações com os papéis da empresa.

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